domingo, 3 de julho de 2011

Os vários "Eus" no Neon Genesis Evangelion

Faço aqui uma interpretação sobre o final deste genial anime, explicando o que significa o último episódio(número 26), mas sem a pretensão de falar mais do que o tema proposto. As questões anteriores ao tema principal serão vistas apenas como preliminares ao entendimento da obra para o leitor.

Todos os personagens, do mais ao menos importante, têm características distintas que levam a dois sentimentos: a solidão e o vazio existencial. O vazio existencial é, pela psicanálise, o sentimento de incompletude, de algo que nunca será alcançado; o desejo que sempre é perseguido, mas nunca cessa; ser limitado pela finitude de um espaço e tempo em que o ser vive. A solidão é tratada pelo porco-espinho de Schopenhauer, onde os porcos-espinhos estavam em um forte inverno e o único meio de sobreviverem era se esquentarem. Logo, havia um dilema: se eu me aproximo dos outros, me firo pelos espinhos; se me distancio, congelo. É o que acontece, principalmente com Shinji, que, para não machucar-se, opta apenas por um envolvimento superficial com os outros.

Assim vivem todos. Shinji, como dito, tem medo de envolver-se; Asuka sente-se superior e se esconde do real envolvimento humano, de algo “de igual para igual”; Rei não consegue relacionar-se, pois não entende por que vive, nem o que deveria fazer. Ela não se sente como parte deste mundo e então vive confusa e deprimida. E todos eles vivem sem a presença materna, cujas mães morreram na infância.

O único momento em que estes sentiam-se completos era quando entravam nos robôs, chamados EVA, para lutar contra os Anjos – que aqui apenas tratarei como inimigos, pois este não é o tema. E lutavam com os Anjos sem questionarem nada, não importava o que fariam, apenas desejavam ficar no robô. A explicação vem próximo do fim do desenho: a alma de suas mães mortas foram implantadas nos seus respectivos robôs – que na verdade também possuíam parte biológica. Ou seja, eles voltavam ao único lugar perfeito para a psicanálise: o útero materno.

Conscientes deste eterno e inevitável vazio, alguns homens criam uma entidade chamada SEELE visando executar um projeto de complementação humana, no qual os homens deixariam de existir em matéria individual. Todos voltariam a existir como na “sopa da vida”, na qual não há um corpo para os seres, todos seriam o todo. Deste modo, a alma das pessoas estaria integrada e isto supriria o vazio - pois estaríamos o mais próximo possível da nossa mãe – e, obviamente, acabaria com a solidão.

Durante o desenho, é dito, nestes próprios termos, que há diversos “eus” compondo o homem, há um ser fragmentado e em eterna tensão entre suas partes. Há “eus” que são reprimidos pelo pai, que é a voz da cultura, o super-eu, e então sentimos a falta de satisfazer “Isso”, do que foi reprimido e não chega ao nosso consciente - mas sempre incomoda.

Agora termino com a poética passagem que encerra o último episódio. Com o projeto bem-sucedido, Shinji está integrado às almas dos outros que aparecem no desenho, e mesmo assim sente-se mal consigo, sente que ainda é um merda – com o perdão da palavra. Mas ele não conversa mais com os outros em termos apenas culturais, ele agora pode conhecer os outros “eus” destas pessoas e estas podem ver os deste. Portanto, não há mais motivo para vergonha, para reprimir nem nada. Então Shinji descobre, entrando em contato com os outros, que o que tanto lhe machucou, o que lhe agoniou a vida inteira não é algo repulsivo e ele deve amar este famigerado “eu”. O que a cultura sempre reprimiu agora é compartilhado e aceitado, pois é percebido como comum a todos, e assim o ser humano acabaria com o mal-estar.

5 comentários:

  1. Caramba, Gilberto! Jamais havia pensado com tanta profundidade, por mais que esse desenho, de fato, estimule reflexões...

    Conhecia o dilema do porco-espinho (e sei como é), mas não sabia que vinha de Schopenhauer. Conhecia vagamente essa teoria da psicanálise de que o útero materno é o lugar perfeito. Mas não associava isso aos EVAs, no caso deles, embora eu soubesse da parte "não-100%-robótica" deles... também nunca me perguntei porque os pilotos não realizavam maiores questionamentos quanto às missões.

    Por fim, basta dizer que só hoje é que fui entender o final. O que seria a tal instrumentabilidade... de fato, na época, preferi bem mais o final alternativo e apocalíptico do The End of Evangelion... que tal analisar esse também? Hehe.

    Grande abraço e parabéns pelos textos!

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  2. Valeu! Eu não digo que 100% aí está correto, pois posso ter vacilado em algum detalhe na hora de interpretar, mas creio que pelo menos está no caminho certo.
    O End of Evangelion também é muito bom, apesar de eu preferir o final que passou na série. Só que eu acho ele bom mais como explicação de algumas questões do enredo e com belas imagens. É de arrepiar coisas como aquela formação do céu da árvore da vida, fruto do conhecimento, Lilith... Talvez assistindo de novo eu mate o que significa o Shinji enforcando a Asuka, daí acho que poderia arriscar algo.

    Abraço!

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    1. Eu acho que a cena do Shinji enforcando a Asuka seria o próprio Shinji que apesar de a Asuka "odiá-lo" ele ainda a amava, e ele não entendia o motivo disso. Nisso ele tenta mata-la pra suprir esse amor que sentia por ela, que ela não correspondia. Porem ele percebe que foi ele próprio que causou essa "repulsa" da Asuka, por ser tao solitário e por se manter distante. E unindo o fim do "The End of Evangelion" com o Final do anime, quando ele percebe que ele vive por um motivo e que merece ser amando, ele para e aceita continuar com ela

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  3. Caríssimo, perpicaz análise do anime, não o recordo muito todavia pelas suas observações gostaria de acrescentar a seguinte leitura. O pensamento oriental, principalmente o Budismo, reporta os "eus" individuais como fruto do ego; as personalidades seriam ilusões. A verdade está em uma união transcedente, em uma energia que permeia toda vida - um Eu uno e comum. Para que este seja alcançado é necessário entretanto um estado de espírito equilibrado a sincronizar-se com uma experimentação nirvânica. Uma vez que a integração proposta no Evangelion é artificial, através da tecnologia, ainda não haveria destarte cognição capaz de usufruir dessa "web" espiritual e portanto livrar-se do ego, da cultura. No cristianismo, a própria palavra Adam é a contração de duas palavras em sânscrito, adi(primeiro) e aham(ego) aquele que representa o primeiro ego separatista, a primeira cognição; no momento em que come da árvore do conhecimento do bem e do mal faz surgir então o pecado, fruto da não acordância com a vontade divina. A redenção viria com o Adi-Atman, o pimeiro Eu, o Cristo que traz novamente o elo com a providência.O mal-estar seria metaforizado nos textos sacros como inerente a todo desenvolvimento cognitivo em sociedade; uma cesura que é gradualmente atenuada para alcançar através da alteridade o Uno e indivisível.

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  4. Ótimo comentário, Bráulio! Realmente é essencial o conhecimento destas questões orientais - o que infelizmente não tenho.
    Minha única dúvida ficou em relação à artificialidade da integração. Esta é feita através de uma manipulação de adão e dos anjos, ou seja, feita por entidades divinas, mas sem nada de transcendental, não há um nirvana proprimante dito. O nirvana é um caminho para uma libertação do mal-estar, mas no desenho não há nenhuma ligação divina e há a idéia de libertação. Pelo budismo isto é perfeitamente como falaste, um fracasso artificial. Mas talvez o desenho passe a ideia de que esta manipulação foi eficaz e foi "burlada" a partir do grande desespero do homem. Mas isto foi apenas a impressão que tive, posso estar errado.
    Valeu pelo comentário, Bráulio, ajudou muito, principalmente a entender a origem do conflito dos homens com Deus e relação destes com a tecnologia.

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